Escolhe a vida: o aborto ou o estupro?


Meu projeto mais recente para este blog seria manter (apesar da dificuldade de conservar a regularidade de postagens) a série Culpa do Comunismo!, para só depois partir para outras temáticas. Entretanto, um acontecimento recente (mas apenas um de muitos que acontecem diariamente, mas que não vêm à tona) tem me inquietado bastante.

Falo do caso da criança de 10 anos de idade, estuprada por seu tio de 33, durante 4 anos de sua vida e que estava grávida de 22 semanas.

Não posso deixar de, inicialmente, expressar toda a revolta diante da perversidade cometida por essa pessoa. Fico a pensar no quanto a criança estará marcada por essa crueldade ao longo de toda a sua vida. Mas não posso deixar de mencionar o quanto minha repulsa foi potencializada pela reação de tantas cristãs e cristãos. E é por essa e outras desumanidades partidas de quem diz carregar o testemunho do amor, que hoje tenho aversão ao cristianismo institucionalizado.

Admito que, em minha espiritualidade, que hoje defino como desinstitucionalizada, carrego muito aprendizado do longo tempo em que me identifiquei como cristão. Entretanto, tenho traçado um caminho próprio de absorção somente das coisas positivas (para mim, claro!) que as religiões de diversas vertentes têm a me oferecer.

O aumento da ojeriza do recente ocorrido se iniciou quando vi os vídeos de cristãs e cristãos na porta do hospital onde seria realizado o procedimento de interrupção da gestação. Acompanhando pelo Twitter, fiquei sabendo que até então não havia acontecido manifestação alguma de religioses contra o estupro e a pedofilia. Aliás, sem querer generalizar, cristãs e cristãos são tão preocupades com a fiscalização da sexualidade alheia, a ponto de fazerem vista grossa para os inúmeros casos de assédio e violência sexual cometidos em seu meio. Não conseguem tornar sua casa o lugar que idealizam, mas são ativistas para exercer controle sobre a vida de não quem não segue seus preceitos e mesmo de quem segue, mas ainda assim goza das prerrogativas do (abalado) Estado laico, que lhes deveria garantir direitos sociais, civis e políticos.

Fiz questão de, no auge de toda a minha indignação, visitar alguns perfis de celebridades cristãs e suas instituições mais conhecidas. Vi silêncio em alguns perfis. Vi ativismo “pró-vida” em quase todos, simplesmente ignorando a dimensão da violência sexual e voltando plena atenção à suposta “crueldade” do aborto que seria realizado. Em outros raros vi uma tentativa de neutralidade. “Não julguemos”, porém com símbolos anti-aborto e hashtags na mesma linha, como #abortonao ou #escolhepoisavida. E a neutralidade mais uma vez mostrando que tem lado bem definido!

Especificamente nessa última hashtag é que vem o grande problema de definição de vida entre essa categoria de cristianismo.

Do modo como é utilizado, vida é o contrário de morrer. O antônimo morte se aproxima mais da ideia de nascimento do que de vida propriamente. Ora, não podemos reduzir a vida ao ato de nascer, pois ela o ultrapassa e permanece sendo vida até que a morte encontre. Dessa maneira, como é posto em suas campanhas, todo o percurso que se faz até que chegue o momento do morrer parece não importar, ou parece importar menos do que o ato de “deixar nascer”.

E assim o foi no caso aqui tratado. A garota estuprada durante 4 anos de sua vida e grávida aos 10 era simplesmente uma questão secundária. No máximo um “que pena!”. E ao ler os comentários das asquerosas postagens, não eram poucas as pessoas que se levantavam justificando que a criança deveria parir porque “com traumas ela já está”. Então que diferença faria um ou outro a mais? Afinal, quem não tem traumas, não é?

O que percebo em todo esse ativismo cristão é justamente a contradição de uma ideia que aprendi nos evangelhos. Recordo que neles Jesus afirma que veio ao mundo para trazer “vida em abundância”. E seus atos revelam, nos seus 3 anos de vida pública, o que é trazer abundância para as pessoas: resumir as leis condenatórias ao amor (que não condena); curar pessoas de seus sofrimentos físicos, psíquicos, espirituais; condenar o acúmulo de bens e riquezas, que gera as desigualdades e causam sofrimento às pessoas mais vulneráveis; levar mensagens de amor e esperança para quem vive no desconsolo; propor a separação entre religião e política; revoltar-se com a mercantilização da fé; criticar as hierarquias religiosas, que sempre tendem a oprimir; constituir cada pessoa como um templo vivo e, portanto, autônomas à mediação do divino pelo sacerdócio institucional; levar à reflexão de que só pode condenar quem não é condenável.

Junto a Maria Madalena, nenhum dos condenadores, ávidos por punição, foi capaz de atirar a primeira pedra. Mas o cristianismo perverso de hoje se antecipa ao autoexame de consciência e prefere condenar primeiro, para depois (nunca, né?) olhar para si.

E escolher a vida, onde é que fica?

É tanta histeria em torno das uniões homoafetivas, mas os abusos como os que ocorreram com a criança grávida aos 10, não têm acontecido nos lares constituídos por gays, lésbicas e trans (sem querer romantizar, mas é uma questão estatística!). Acontecem nos “lares” heterossexuais. São cometidos por pais, avôs, tios, irmãos, primos, vizinhos, padres e pastores. E ainda ousam dizer que Thammy não é pai por não ter um pênis! Mas o pai abusador, violento, explorador ou o que abandona, é pai só por conta de uma genitália, não é?

E aí chegamos em uma grande questão.

É esse mesmo cristianismo ativista pró-vida que também forja o termo “ideologia de gênero”. E vejamos as consequências que esse negacionismo sobre a objetividade que salta aos nossos olhos, mas que muites preferem dizer não existir, ou mesmo condenar. Sem tratar gênero, continuamos reforçando que o problema está no aborto e não no estuprador. Sem tratar gênero, continuamos reforçando que a culpa do assédio ou a violência sexual é da mulher que usa batom vermelho, roupas justas ou curtas, e não do violentador. Sem tratar gênero, continuamos reforçando que apesar de maior escolaridade entre mulheres, é normal que elas continuem ganhando menos, trabalhando mais, com responsabilidade quase total sobre es filhes e a economia doméstica. Sem tratar gênero, continuamos reforçando que a família perfeita é a que tem um sujeito com pênis casado com outro que tem uma vagina e que isso é quase 100% para definir um lar, sem se importar com todos os abusos que acontecem nesse ideal de união que matam, traumatizam, lesam, machucam, porque sem falar de gênero estamos simplesmente reforçando o lugar do homem abusador e da mulher vitimada e dando a essa lógica a justificativa infundada da biologia ou a justificativa cruel da vontade de Deus. E não foram poucos os comentários que protegeram o estuprador da menina de 10 anos evocando essa vontade. “Não conhecemos ou entendemos os planos do Senhor”.

Mas todo esse texto me coloca como um intolerante religioso? Estou eu a desrespeitar a crença da cristandade? Cristofóbico, será?

Definitivamente, não!

Que tenham as cristãs e os cristãos seus preceitos LGBTQI+fóbicos, machistas ou contra aborto. Mas que o façam dentro de seus muros! Que o façam com seus corpos! Façam entre si!

Se não quero ouvir uma pregação que condena minha homoafetividade, não piso em uma igreja; se não quero me revoltar com a reprodução das ideologias que violentam mulheres e passam pano em agressores, não passo nem pela porta. Mas não posso admitir que vocês queiram impor suas particularidades sobre todes. Não posso admitir que invadam um hospital para impedir uma pessoa de fazer uso de sua autonomia, de sua vontade e de proteger sua vida já tão atingida (a vida em abundância da criança, vocês não defendem, né?). Não posso admitir que vocês agridam umbandistas e candomblecistas demonizando suas práticas. Não posso admitir que vocês liguem para mim querendo falar mensagens de amor e esperança, quando não conseguem nem se revoltar com o genocídio da população negra, a liderança do Brasil em assassinatos de pessoas trans, a superlotação de pobres e pretos nos presídios, a romantização da violência contra as mulheres.

Guardem para vocês a falsa defesa da vida, porque contra a crueldade e a hipocrisia, sempre me levantarei em combate!

Comentários

Alessandro Omena disse…
Excelente reflexão meu amigo Eden, além de escrever
muito bem. Também fiquei indignado com todo esse repertório nefasto, indigno, desrespeitoso e cruel desse cristianismo doentio.

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