DESCULPA, CARMEN, MAS VOCÊ É PRESIDENTA!

Muita gente se incomodou com a exigência de Dilma Rousseff em ser chamada de PRESIDENTA. A torto e a direito vi pessoas utilizarem a situação para expelir seu ódio. "É muito burra"; "não está preparada para o cargo". Eu, particularmente, confesso que achava que presidente era um substantivo comum de dois gêneros, mas em nenhum momento me incomodei com o uso "errado" da palavra, porque acredito que rompendo com as estruturas linguísticas também podemos romper com estruturas psíquicas e socioculturais. Ora, se a língua é fundamental para o exercício do pensamento e da reflexão e se Dilma estava promovendo uma mudança de rumo nessas esferas isso, SOBRETUDO PARA AS MULHERES, deveria ser motivo para apoio.
O que acontece é que o caso é mais grave do que parece.
O termo PRESIDENTA está presente no "Dicionário Cândido de Figueiredo" desde 1899 e, antes disso, já era utilizado por Machado de Assis em "Memórias Póstumas de Brás Cubas", de 1880.
Até onde sabemos, Machado de Assis não foi vítima de ódio por utilizar, na época, de um neologismo que desestruturava, em certa medida, a posição de privilégio masculina em um importante cargo de mando. Dilma, por ser mulher, passado tanto tempo dos primeiros usos e da consagração gramatical da palavra, não tem a mesma sorte. A explicação mais plausível é que a palavra-ameaça se concretiza por meio dela. Ela mostra que ser PRESIDENTA é algo real e possível e diante da conjuntura, podemos perceber que o incômodo não é meramente com a palavra, mas com a encarnação dela.
A última pérola acerca da questão, pasmem, protagonizada por uma mulher chamada Carmen Lúcia, evidencia bem que o problema que se nos coloca adiante é muito mais do que o uso correto ou não da gramática. Ora, juristas tendem a se colocar como doutxs, a reivindicar título sob a justificativa de "pronome de tratamento" (doutor/a, até onde conheço, não é pronome, pelo menos na gramática formal, não o é) e logo desse meio chega a nós a notícia de que a ministra é "amante da língua portuguesa". Seus ares de intelectualidade e de boa conhecedora da língua e seu claro ataque à PRESIDENTA Dilma, mostram bem o falso amor que tem à língua e a pouca preocupação com urgentes questões de gênero que, de tão douta que deve ser, não chega a perceber como lhe afetam.
Nos dois casos, nos usos de "presidenta" e nos usos de "doutor/a", fica-nos claro como a língua é capaz de empoderar pessoas, independente do uso gramaticalmente correto. Observemos os usos de "doutor/a" para quaisquer profissionais que não tenham o título de fato. Chega a ser constrangedor não utilizar tais palavras para nos dirigir ou referir a pessoas socialmente consagradas como doutoras (médicas/os e advogadas/os, sobretudo). Chega a ser mais constrangedor usar as palavras quando estas/es profissionais, em alguns casos, nada têm de doutas/os; mas há uma força socialmente constituída que nos impele ao uso desconfortável.
O mesmo se dá em usar ou não usar PRESIDENTA. Empoderamos não a uma mulher específica, mas a uma coletividade. Chefe, tenente, gerente, dentre outros substantivos relacionados a cargos de mando são comuns de dois gêneros, mas ao fazermos esforço imaginativo para cada um, deparamo-nos automaticamente com imagens masculinas. Dessa forma, romper com a estrutura linguística, mesmo que cometendo erros gramaticais, consiste em romper com estruturas socioculturais que promovem relações assimétricas. Voltemos nosso olhar para as histórias das línguas e constataremos que português, espanhol, francês, italiano, todas de origem latina, diferenciam-se pela força dos usos que superou a "solidez" das estruturas ortográficas e gramaticais.
Então, Carmen, queira ou não, você é PRESIDENTA!

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