ALGUNS ESCLARECIMENTOS SOBRE IDENTIDADE DE GÊNERO E ORIENTAÇÃO SEXUAL

SOBRE A DISCUSSÃO SOBRE IDENTIDADE DE GÊNERO NO ENCONTRO COM FÁTIMA BERNARDES

Acho deveras interessante que discussões do tipo sejam lavadas a veículos de alto alcance, como o referido programa de TV. Dessa maneira, abaixo parafraseio algumas das falas que merecem mais atenção nessas discussões:

1. "PESSOAS TRANS NÃO SE IDENTIFICAM COM SEU GÊNERO BIOLÓGICO"

De 1948 a 1990, "homossexualismo" esteve no Cadastro Internacional de Doenças e era enquadrado pela classe médica como desvio e transtorno sexual, devido às explicações acientíficas (por não terem verificabilidade empírica alguma) de que haveria algum problema no desenvolvimento fetal ou algum transtorno adquirido no processo de socialização dos sujeitos que os levariam a "desviar-se" da "normalidade" da heterossexualidade.
"Transexualismo" continua figurando no CID como transtorno e será alterado para "disforia" na sua 11ª versão. Mais uma vez, uma arbitrariedade do poder biomédico ocidental, que busca perenizar seu "direito" de definição dos sujeitos, pois não há também quaisquer comprovação empírica de que transexuais são resultado de problemas de caráter cromossômico, hormonal, psíquico ou social.
A patologização dessa condição baseia-se em uma concepção de normalidade que parte do pressuposto cis e heterossexual e toma falsamente argumentos biologizantes como definitórios.
Como podemos observar nos estudos de gênero, a identidade de gênero é construída socialmente - e de variação imensurável ao longo da história e nas diferentes culturas - e, apesar de, na maioria dos casos, tomar a genitália como argumento para a produção de "feminilidades", "masculinidades" e outras formas de representação, não pode ser tomada como determinante das diferenças.
A clássica frase de Simone de Beauvoir, "não se nasce mulher, torna-se", já elucidava bem que não há imperativo biológico que seja determinante na construção dos sujeitos, mas que há uma gama de fatores externos (socioculturais e históricos), que fornecerão as bases para que os indivíduos formem suas identidades em uma relação dialética entre os determinantes sociais e sua autonomia.
Ao fim dessa primeira questão, "gênero" não tem caráter biológico e, mesmo sexo, como assevera Judith Butler, "sempre foi gênero", pois nosso olhar sobre as genitálias é anteriormente condicionado pelas construções de gênero que impregnam nossas percepções sobre algo que julgamos ser neutro.

2. "QUANDO TODAS AS PESSOAS ESTÃO PENSANDO IGUAL, É PORQUE NÃO ESTÃO PENSANDO."

Essa é uma falsa questão, na verdade. Não tirando o mérito inquestionável das explicações do Professor Pasquale sobre a língua portuguesa. No quesito filosofia, é bom manter o bom senso.
Não há possibilidade alguma de que, em qualquer grupo ou agrupamento, seus integrantes pensem de maneira homogênea.
Podemos remeter, para esclarecer essa questão, ao capítulo "Os indivíduos participam diferente de sua cultura", do livro "Cultura: um conceito antropológico", de Roque Laraia de Barros, onde ele argumenta que não há possibilidade alguma de que, em qualquer cultura, por mais que sua "consciência coletiva" (trazendo Durkheim para a conversa) assemelhe totalmente seus participantes, que participem da mesma maneira dos símbolos, regras e performances.
Em todo e qualquer espaço, a diferença sempre estará presente, porque a cultura não funciona como um programa de computador que fará os sujeitos agirem dentro de determinadas balizas. Haverá sempre uma combinação de autonomia com os elementos da cultura.
Ora, o próprio Durkheim, que atribui grande peso à coletividade e relativa autonomia aos indivíduos, trata o crime, que é a transgressão das "representações coletivas", como algo normal, presente em todas as espécies de sociedades, nas de solidariedade mecânica e nas de solidariedade orgânica - portanto, um fato social.

3. "ELA É TRANS, MAS É MAIS MULHER, MAIS FEMININA DO QUE EU."

Essa frase da Carolina Ferraz, em relação à Carol Massa, é bastante sintomática de uma necessidade de desconstruir um essencialismo na relação entre o corpo que se nasce e o corpo que se constrói e sua performance.
Corpos e performances de pessoas trans, de pessoas travestis, de drag queens e de pessoas andróginas, servem para elucidar claramente como não há essência alguma que esteja relacionada com qualquer elemento dito determinante, na construção das identidades de gênero.
Trazendo Judith Butler mais uma vez: a "parodização" dos gêneros imita o mito da originalidade e, portanto, o refuta, pois desconstrói qualquer essencialismo.

4. "NÃO É ESCOLHA, AS PESSOAS NASCEM ASSIM".

Identidade de gênero e orientação sexual, de fato, não são escolhas. Ou pelo menos, não são escolhas feitas de modo consciente e pragmático, tal como escolher uma roupa, escolher praticar um ato ou qualquer outro tipo de escolha. Mas, porque não se trata de escolha, não podemos afirmar que se trata de algo que tenha nascido com as pessoas.
Há, na verdade, uma gama de fatores que podem ou não conduzir/orientar as pessoas a se construírem como são. Mais que isso, não há ser construído em definitivo, mas seres em permanente construção e que simplesmente vão vivendo suas escolhas sem, necessariamente, parar para pensar que as estão fazendo. É por isso que, ao tratarmos das questões de gênero/sexualidade, não consideramos adequada a palavra "opção", pois a vida não oferece para ninguém uma prova de múltipla escolha em que assinalamos um "x" e nos tornamos quem somos.
A essa questão, podemos nos remeter à heterossexualidade e aos cisgêneros. Afinal, poderiam fornecer a data em que escolheram sua orientação sexual e sua identidade de gênero?
Não seria de admirar que logo brotassem várias Gabrielas, que "nasceram assim", "cresceram assim" e "são mesmo assim". Só lhes faltaria apresentar a comprovação desse achismo (opressor) - que, nunca chegará a se estabelecer - e que se impõe como verdade para assentar o domínio de um grupo de "dominantes" - plenos e normais - sobre um grupo de "dominados" - imperfeitos e desviados. Dominação essa, que encontra sua maneira mais permanente de imposição, por meio do poder de definição, de explicação, de determinação do outro, tomando sempre como base o "eu-critério".

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