Desde o advento da Revolução Científica até o século XIX, falar em ciência consistia em falar de conhecimentos produzidos sob rígidos critérios de quantificação e experimentação. Os reflexos disso se sobrepuseram ao surgimento das ciências humanas. Assim, quando nos debruçamos sobre trabalhos de humanas desse período, percebemos a preocupação de demonstrar que a metodologia e a discussão se baseada nos mesmos critérios e mesmo utilizava do mesmo jargão das ciências da natureza.
Acontece que à medida em que fomos adentrando no século XX, as ciências humanas foram cada vez mais percebendo as suas especificidades. A "natureza" dos seus objetos (melhor dizendo, dos sujeitos que estuda) são da mesma "natureza" dos sujeitos cognoscentes. E foi assim que as/os cientistas das humanas passaram a se desprender dos padrões das ciências da natureza.
Mas essa tarefa de desprendimento e de estabelecimento de novas possibilidades para a produção do saber científico não deixaram de causar um reboliço no seio da academia, pois o saber científico das ciências humanas, sempre visto com desconfiança, passa a ser visto com mais desconfiança ainda, já que as/os cientistas das ciências da natureza dificilmente abririam mão dos seus axiomas das suas verdades prontas sobre o que seria científico.
Obviamente que, diante de uma concepção específica de saber que atravessa alguns séculos em comparação com uma nova concepção incipiente e também cheia de conflitos internos e excessivamente crítica à própria ciência e autocrítica às suas maneiras de fazê-la, a sua força para se colocar enquanto modelo legítimo de científico também estaria em desvantagem. E, dessa maneira, o resultado é que, ainda hoje, no século XXI, não deixamos de conceber como cientista a figura da pessoa vestida com um jaleco, enclausurada em um laboratório, observando por meio de microscópio e manipulando tubos de ensaio.
Essa representação de ciência, cientista e científico tem fortes impactos no que concerne à produção de verdades em nossos dias. É por meio dela que as pessoas se valem da expressão "é cientificamente comprovado", usada para tornar incontestável qualquer "verdade".
Pois bem, essa noção de "verdade" do "cientificamente comprovado" está claramente relacionada com um modelo "cientificamente comprovado" de ciência que é bastante contraditório e que deveria estar obsoleto. Ele se remete a uma percepção de ciência como instituição que produz conhecimentos definitivos e imutáveis, que chega a aproximar o científico do divino e que, portanto, des-historiciza as condições de produção do saber científico e, portanto, absolutiza também as pessoas que o produz.
Mas não é a toda ciência que o "cientificamente comprovado" se aplica, mas tão somente ao modelo tradicional quantificável e experimental de ciência. Dessa maneira, nossa representação de científico nos leva a acreditar piamente que o que se diz na área médica, por exemplo, deve ser seguido à risca, pois tem probabilidade praticamente nula de não ser da maneira que foi dito. E daí, provavelmente nos venha a postura de reverência diante de um profissional da saúde, sobretudo se for um médico: medo de contestar a mais absurda prescrição, o cuidado de chamar sempre de doutor/a e de demonstrar o máximo respeito sempre tratando como senhor/a e nunca por você etc.
Essa reverência se dá a toda/o a/o douta/o que estiver nos padrões do jaleco e do laboratório.
Mas e quando estamos diante de um/a cientista fora desse estereótipo?
Aí toda a representação de cientista deixa de valer. E logo o medo, a cerimônia, o respeito evaporam-se rapidamente. Ficamos mais confortáveis. Ela/e é um cientista no sentido figurado do termo. É, na verdade, um igual a mim. Ou melhor, é até uma pessoa alienada da realidade por ter lido demais alguns teóricos. Contaminada por alguma ideologia e que tenho a missão de trazer à realidade.
É dessa maneira que todos os dados científicos ou qualquer reflexão trazida por um/a cientista social, por mais embasadas que estejam, não passam da opinião dela/e. Sim! Se ela/e acha que existe uma luta de classes que produz entraves na mobilidade social, eu digo que não ascende socialmente quem é preguiçosa/o! Se um/a jurista mostra dados de que a diminuição da maioridade penal agrava a situação ao invés de resolvê-la, eu a/o mando levar um/a menor em dívida com a justiça para casa. Se um/a pedagoga/o me fala da importância de não tornar a educação algo doloroso física e psiquicamente eu digo que na minha época levei muita pisa e não dei pra bandida/o.
E assim vamos seguindo trocando determinadas formas de saber científico por ignorância voluntária.
De onde vem essa diferenciação de cientistas legítimas/os e ilegítimas/os? Creio eu que de uma dominação ideológica, que busca reproduzir um modelo específico de hierarquia social.
Não podemos deixar de levar em conta que a distribuição de profissionais no contexto acadêmico passa sim por um recorte de classe. Nessa divisão, majoritariamente os cursos que produzem as/os cientistas estereotipadas/os, são dominados por pessoas provenientes de classes privilegiadas, enquanto que as/os cientistas de segunda ou terceira grandeza, são provenientes em sua maioria de classes menos privilegiadas. Obviamente que manter os privilégios de um grupo de cientistas com relação ao seu status e, principalmente à produção de verdades consiste em um trabalho de manutenção de um ordenamento social específico. Ora, status profissional consiste, não podemos deixar de relacionar, a remunerações mais volumosas, pois esse status está relacionado à importância social daquela/e profissional (ou você acha que a estratificação salarial de profissionais de mesmo nível seria aleatória?). Da mesma forma, a importância social desta/e profissional produzirá um discurso de autoridade sobre a realidade.
Ora, se quem tem mais status consequentemente tem mais autoridade para falar da realidade e, não à toa, provém grandemente de grupos sociais específicos, não é óbvio que estamos falando de classes que estão cuidando por manter o ordenamento social favorável aos seus privilégios? E se aquele outro grupo de cientistas não tão bem remuneradas/os, não tão bem ouvidas/os produzem um conhecimento que leva a desnaturalizar o que aquele primeiro grupo diz que é natural, a pensar nas origens e causas da realidade em que nos inserimos, a perceber que aquele primeiro grupo quer manter as coisas do jeito que estão porque lhes é mais confortável, não é lógico que as/os privilegiadas/os se esforçarão por desmerecer as condições e formas de produção desse saber subversivo, perigoso, promotor de caos? E se, diante de toda essa realidade, desconsidero a seriedade do saber produzido pelo grupo desprivilegiado de cientistas, não acreditarei facilmente naquele grupo que domina e muitas vezes não estarei eu defendendo saberes e modelos de saber e de pensar que terminam por me dominar?
Acontece que à medida em que fomos adentrando no século XX, as ciências humanas foram cada vez mais percebendo as suas especificidades. A "natureza" dos seus objetos (melhor dizendo, dos sujeitos que estuda) são da mesma "natureza" dos sujeitos cognoscentes. E foi assim que as/os cientistas das humanas passaram a se desprender dos padrões das ciências da natureza.
Mas essa tarefa de desprendimento e de estabelecimento de novas possibilidades para a produção do saber científico não deixaram de causar um reboliço no seio da academia, pois o saber científico das ciências humanas, sempre visto com desconfiança, passa a ser visto com mais desconfiança ainda, já que as/os cientistas das ciências da natureza dificilmente abririam mão dos seus axiomas das suas verdades prontas sobre o que seria científico.
Obviamente que, diante de uma concepção específica de saber que atravessa alguns séculos em comparação com uma nova concepção incipiente e também cheia de conflitos internos e excessivamente crítica à própria ciência e autocrítica às suas maneiras de fazê-la, a sua força para se colocar enquanto modelo legítimo de científico também estaria em desvantagem. E, dessa maneira, o resultado é que, ainda hoje, no século XXI, não deixamos de conceber como cientista a figura da pessoa vestida com um jaleco, enclausurada em um laboratório, observando por meio de microscópio e manipulando tubos de ensaio.
Essa representação de ciência, cientista e científico tem fortes impactos no que concerne à produção de verdades em nossos dias. É por meio dela que as pessoas se valem da expressão "é cientificamente comprovado", usada para tornar incontestável qualquer "verdade".
Pois bem, essa noção de "verdade" do "cientificamente comprovado" está claramente relacionada com um modelo "cientificamente comprovado" de ciência que é bastante contraditório e que deveria estar obsoleto. Ele se remete a uma percepção de ciência como instituição que produz conhecimentos definitivos e imutáveis, que chega a aproximar o científico do divino e que, portanto, des-historiciza as condições de produção do saber científico e, portanto, absolutiza também as pessoas que o produz.
Mas não é a toda ciência que o "cientificamente comprovado" se aplica, mas tão somente ao modelo tradicional quantificável e experimental de ciência. Dessa maneira, nossa representação de científico nos leva a acreditar piamente que o que se diz na área médica, por exemplo, deve ser seguido à risca, pois tem probabilidade praticamente nula de não ser da maneira que foi dito. E daí, provavelmente nos venha a postura de reverência diante de um profissional da saúde, sobretudo se for um médico: medo de contestar a mais absurda prescrição, o cuidado de chamar sempre de doutor/a e de demonstrar o máximo respeito sempre tratando como senhor/a e nunca por você etc.
Essa reverência se dá a toda/o a/o douta/o que estiver nos padrões do jaleco e do laboratório.
Mas e quando estamos diante de um/a cientista fora desse estereótipo?
Aí toda a representação de cientista deixa de valer. E logo o medo, a cerimônia, o respeito evaporam-se rapidamente. Ficamos mais confortáveis. Ela/e é um cientista no sentido figurado do termo. É, na verdade, um igual a mim. Ou melhor, é até uma pessoa alienada da realidade por ter lido demais alguns teóricos. Contaminada por alguma ideologia e que tenho a missão de trazer à realidade.
É dessa maneira que todos os dados científicos ou qualquer reflexão trazida por um/a cientista social, por mais embasadas que estejam, não passam da opinião dela/e. Sim! Se ela/e acha que existe uma luta de classes que produz entraves na mobilidade social, eu digo que não ascende socialmente quem é preguiçosa/o! Se um/a jurista mostra dados de que a diminuição da maioridade penal agrava a situação ao invés de resolvê-la, eu a/o mando levar um/a menor em dívida com a justiça para casa. Se um/a pedagoga/o me fala da importância de não tornar a educação algo doloroso física e psiquicamente eu digo que na minha época levei muita pisa e não dei pra bandida/o.
E assim vamos seguindo trocando determinadas formas de saber científico por ignorância voluntária.
De onde vem essa diferenciação de cientistas legítimas/os e ilegítimas/os? Creio eu que de uma dominação ideológica, que busca reproduzir um modelo específico de hierarquia social.
Não podemos deixar de levar em conta que a distribuição de profissionais no contexto acadêmico passa sim por um recorte de classe. Nessa divisão, majoritariamente os cursos que produzem as/os cientistas estereotipadas/os, são dominados por pessoas provenientes de classes privilegiadas, enquanto que as/os cientistas de segunda ou terceira grandeza, são provenientes em sua maioria de classes menos privilegiadas. Obviamente que manter os privilégios de um grupo de cientistas com relação ao seu status e, principalmente à produção de verdades consiste em um trabalho de manutenção de um ordenamento social específico. Ora, status profissional consiste, não podemos deixar de relacionar, a remunerações mais volumosas, pois esse status está relacionado à importância social daquela/e profissional (ou você acha que a estratificação salarial de profissionais de mesmo nível seria aleatória?). Da mesma forma, a importância social desta/e profissional produzirá um discurso de autoridade sobre a realidade.
Ora, se quem tem mais status consequentemente tem mais autoridade para falar da realidade e, não à toa, provém grandemente de grupos sociais específicos, não é óbvio que estamos falando de classes que estão cuidando por manter o ordenamento social favorável aos seus privilégios? E se aquele outro grupo de cientistas não tão bem remuneradas/os, não tão bem ouvidas/os produzem um conhecimento que leva a desnaturalizar o que aquele primeiro grupo diz que é natural, a pensar nas origens e causas da realidade em que nos inserimos, a perceber que aquele primeiro grupo quer manter as coisas do jeito que estão porque lhes é mais confortável, não é lógico que as/os privilegiadas/os se esforçarão por desmerecer as condições e formas de produção desse saber subversivo, perigoso, promotor de caos? E se, diante de toda essa realidade, desconsidero a seriedade do saber produzido pelo grupo desprivilegiado de cientistas, não acreditarei facilmente naquele grupo que domina e muitas vezes não estarei eu defendendo saberes e modelos de saber e de pensar que terminam por me dominar?
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